Propostas Básicas ao Nível Mundial
Por Philip Anthony Gold, Ombudsman de Segurança de Trânsito da CET/São Paulo
Preâmbulo
Desde o estabelecimento de veículos motorizados como aspecto comum em cidades o conceito mundial preponderante do "trânsito" sempre foi, e continua sendo em 2012, voltado principalmente ao deslocamento de veículos motorizados, mesmo em países e cidades que investem em melhorias às condições para a circulação de pessoas a pé e em bicicletas.
Grande parte das legislações nacionais de trânsito, bem como regras de orientação de comportamento adequado para usuários, extraídas dessas mesmas legislações, ainda se baseia diretamente nas cláusulas da Convenção de Viena Sobre Trânsito Rodoviário (Vienna Convention on Road Traffic, 1968). Esta Convenção, segundo suas primeiras frases, teve como objetivo:
"o desejo de facilitar trânsito rodoviário internacional e aumentar a segurança viária por meio da adoção de regras padronizadas de trânsito"
Em seguida a Convenção prossegue com uma lista de definições dos termos utilizados. Porém, esta lista deixa de oferecer definições para alguns dos termos hoje considerados os mais fundamentais em transporte e tráfego urbano, como por exemplo: "pedestre ", "trânsito ", "calçada/passeio " e "acidente de trânsito", embora utilizando esses termos no decorrer do texto.
O texto geral da Convenção é claramente focado em deslocamento de veículos motorizados. Menção de pedestres e bicicletas aparece muito pouco, praticamente limitada a situações onde poderiam interferir no fluxo de veículos motorizados. Embora não seja colocado explicitamente na Convenção, seu texto claramente indica que não reconhece pessoas caminhando a pé como parte do trânsito, especialmente enquanto caminhando nas calçadas. Assim, também não reconhece como acidentes de trânsito eventos como (i) quedas de pedestres devido a calçadas com defeitos e (ii) quedas de ciclistas nas ruas.
Regras são oferecidas a pedestres e condutores para as situações de travessia de pedestres. Essas regras não funcionam na prática, e obviamente foram redigidas sem muito pensamento e análise. Em resumo são avisos rápidos para pedestres, que devem se virar ao atravessar as ruas, já que o "trânsito" (entendido como não incluindo pedestres, somente veículos) oferece perigo e não deve ser interrompido. As regras incluem tarefas impossíveis de serem realizadas por seres humanos normais como, por exemplo:
Em travessias de pedestres sem sinalização semafórica:
"Pedestres não devem entrar na rua sem levar em consideração a distância e a velocidade de veículos se aproximando."
Infelizmente, conforme mencionado, o texto da Convenção continua sendo a base para as legislações e regras de trânsito de muitos países do mundo, sem a melhoria e atualização necessárias de vários conceitos básicos.
Podem-se fazer críticas semelhantes também ao nível da sinalização viária, assunto de outra convenção de Viena da mesma época. Assim, por exemplo, até hoje, não se reconhece a necessidade de informar pedestres, por meio de sinalização, dos sentidos de fluxo dos veículos nas ruas, informação essa totalmente fundamental para um pedestre poder atravessar sem risco de atropelamento.
O não desenvolvimento e a não evolução do conceito de "trânsito" trouxeram algumas consequências negativas graves, inclusive alguns aspectos ocultos até hoje, embora sejam extremamente significativos:
a) Muitos países do mundo não reconhecem pessoas a pé como parte do trânsito, excluindo, ou não integrando plenamente, investimentos em melhorias para o andar a pé em planos e programas de desenvolvimento de sistemas de transporte urbano.
b) Aparentemente nenhum país do mundo reconhece quedas de pedestres em calçadas como acidente de trânsito, embora existam dados indicando que este assunto seja tão grave quanto toda a questão dos demais acidentes de trânsito.
c) A Década Mundial de Ações para a Segurança de Trânsito 2011-2020, iniciativa conjunta da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Banco Mundial (BIRD), atualmente em andamento e agora com cada vez mais aderentes, se baseia totalmente no conceito do acidente de trânsito como evento que se caracteriza como colisão que inclui pelo menos um veículo em movimento. Assim também ignora e exclui quedas de pedestres e ciclistas. Isto, embora seja possível encontrar a seguinte definição de "infraestrutura viária" no Relatório base da Década (Relatório Mundial Sobre Prevenção de Lesões em Trânsito, OMS/BIRD, Genebra, 2004):
"Infraestrutura viária: facilidades e equipamentos viários, incluindo-se a rede, espaços para estacionamento, lugares para paradas, sistema de drenagem, pontes e calçadas."
Enfim, o pedestre existe, porém somente em último lugar.
Proposta 1: Adoção de uma Nova Definição de "Trânsito ".
"Deslocamento de pessoas, animais e bens nas vias públicas: a pé, e/ou em veículos, não motorizados ou motorizados."
Proposta 2: Adoção de uma Nova Definição de "Via Pública".
"Superfície por onde transitam pessoas, animais e veículos, compreendendo os seguintes elementos: pista, calçada, acostamento, ilha, refúgio e canteiro central."
Proposta 3: Adoção de uma Nova Definição de "Acidente de Trânsito".
"Qualquer evento indesejado e não premeditado que ocorre no trânsito, que envolve ou não veículos, e que resulta em danos pessoais e/ou danos materiais."
Recomenda-se que essas novas definições propostas devam substituir as definições ainda em utilização no mundo, inclusive na iniciativa "Década Mundial de Ações de Segurança de Trânsito 2011-2020" de ONU/OMS/Banco Mundial, todas das quais são baseadas nas definições originais que constam na Convenção de Viena de 1968. Consideram-se as novas definições propostas como essenciais para corrigir a visão equivocada do "trânsito", adotada mundialmente até então, que apresenta como problemas principais:
• Não considerar como parte do trânsito o movimento de pessoas a pé nas calçadas;
• Não considerar as calçadas como partes da infraestrutura da via pública onde ocorre o trânsito;
• Não considerar como acidentes de trânsito as quedas de pedestres nas calçadas e nas vias, se não houver envolvimento de veículos;
• Não considerar como acidentes de trânsito os acidentes com ciclistas, se não houver envolvimento de outros veículos.
Proposta 4: Criação pela OMS - Organização Mundial de Saúde, de Códigos Específicos de Trauma para Registro de Quedas de Pedestres, sem envolvimento de veículos (i) em Calçadas e (ii) em Vias de Circulação de Veículos.
Considera-se a criação dos códigos específicos propostos como essencial levando em consideração pesquisas recentes realizadas no Brasil e pela OCDE - Organização pela Cooperação de Desenvolvimento. Essas pesquisas indicam claramente que quedas de pedestres, em países motorizados em geral, apresentam frequências de ocorrência e consequências negativas, sociais e econômicas tão significativas quanto os demais eventos no trânsito já considerados como acidentes, que sempre envolvem veículos.
Porém, devido à ausência de códigos específicos, essas quedas são administrativamente invisíveis, ou ocultas, não sendo possível nem efetuar um registro das ocorrências, e muito menos acompanhar e monitorar as suas consequências. Assim, a infraestrutura para o andar a pé em geral não recebe a atenção que merece nas atividades de planejamento, projeto, investimento, construção e manutenção de redes de transporte urbano. O resultado geral é uma oferta de condições de segurança, conforto e fluidez para circulação de pessoas a pé muito piores do que as condições oferecidas para a circulação de pessoas em veículos.
Proposta 5: Reconhecimento Mundial do Andar a Pé Como um
Modo de Transporte para Fins de Planejamento e Alocação de Recursos em Sistemas de Transporte Urbano.
O Andar a Pé é um modo de transporte da mesma forma que bicicletas, motocicletas, automóveis, ônibus, metrô e trem são modos de transporte: pessoas e bens são deslocados entre locais geográficos por meio de "veículos" circulando em uma infraestrutura. No caso do andar a pé o "veículo" é a própria pessoa utilizando suas pernas e seus pés; a infraestrutura consiste da rede de calçadas e travessias. Quaisquer bens transportados por este modo são carregados pelos pedestres. O modo inclui ainda transporte de passageiros: por exemplo, adultos carregando bebês ou crianças.
Proposta 6: Reconhecimento Mundial do Andar a Pé Como o Modo de Transporte Mais Fundamental do Sistema de Transporte Urbano de Qualquer Cidade.
Mesmo nas cidades motorizadas do mundo a população inteira anda a pé todos os dias. Parte significativa (30-40% tipicamente) da população anda a pé entre residência e local de trabalho e entre residência e local de estudo. Todo deslocamento de transporte coletivo inclui trechos percorridos a pé. Muitos usuários de automóveis andam a pé para acessar locais de estacionamento, serviços, lazer e comércio e para almoçar.
Proposta 7: Divulgação e Reconhecimento Mundial do Conceito - RVTCP - Rede Viária para Transporte e Circulação a Pé.
Essa rede já existe. É composta principalmente de calçadas e travessias de pedestres. Deve ser provida de padrões de qualidade para o usuário, pelo menos igual aos padrões de qualidade das demais redes do sistema de transporte urbano, onde circulam veículos não motorizados, veículos motorizados, metrô e trem.
Proposta 8: Inclusão obrigatória da RVTCP em todos os Planos de Desenvolvimento de Transporte Urbano.
Proposta 9: Inclusão obrigatória da RVTCP em todos os projetos de transporte urbano, financiados pelos bancos nacionais e multilaterais de desenvolvimento, e por outras agências de desenvolvimento
