Pobre, dono de um modesto Fusca ano 78, o personagem desta história alterna poucos momentos de lucidez e confusão mental. Com frequencia, mistura álcool a fortes remédios, vindo a delirar durante as conversas. Sem querer expor a sua fragilidade humana e as dificuldades psicológicas, ZH reconstitui sua história apenas com o intuito de mostrar as brechas da lei que permitem a um infrator contumaz continuar dirigindo, colocando em risco a sua vida e a de outros
Ao parar um Fusca ano 1978 que ziguezagueava pela freeway no dia 23 de junho, em Gravataí, a Polícia Rodoviária Federal encontrou ao volante um motorista completamente embriagado, que mal conseguia andar ou falar. Quando checaram seus antecedentes, os agentes se surpreenderam: era a nona vez que o condutor era flagrado dirigindo sob influência do álcool, a quarta somente em 2010.
Essa história fica ainda pior quando, quase dois meses depois da última prisão, a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) dele permanece em situação normal junto ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS).
Zero Hora rastreou todos os processos administrativos e judiciais envolvendo esse condutor. Descobriu um cenário catastrófico em que brechas e ritos burocráticos da lei, aliados à sobrecarga e ao desencontro de informações entre a Polícia Civil e a Justiça, tornam ruas e estradas ainda mais perigosas. Permitem que o carro utilizado livremente por esse motorista ou por qualquer outro infrator semelhante possa, a qualquer momento, transformar-se em uma arma letal.
– Acontece de flagrarmos motoristas reincidentes. Fazemos o nosso trabalho, mas temos de respeitar os outros órgãos – afirma Jorge Nunes, da PRF.
18 mil flagrados em dois anos
O caminho para suspender uma CNH é moroso. O ato administrativo, conduzido pelo Detran, pode levar até dois anos. Enquanto isso, circulam legalmente. De acordo com o diretor técnico do Detran, Ildo Szinveslski, a legislação não permite cassar a carteira sem passar por todo esse rito.
– O Detran precisa respeitar a ampla defesa e os prazos legais – disse.
Ao rastrear os inquéritos policiais e processos judiciais, nenhuma autoridade havia pedido a cassação da CNH do motorista flagrado nove vezes. Sobrecarregadas, as delegacias distritais se tornaram quase uma fábrica, produzindo inquéritos sem se aprofundar nas centenas de casos de trânsito que aparecem diariamente. Pedem a condenação por dirigir bêbado, mas não agem para retirar as carteiras. Quando chegam ao Ministério Público e à Justiça, os processos tomam quase o mesmo rumo. Atolados em ações, muitos casos absurdos passam batidos e medidas brandas são aplicadas.
Além da legislação condescendente, a anatomia da impunidade revela a falta de interligação, com programas de consultas que não unificam dados administrativos e criminais. As comarcas não se comunicam, e os juízes não sabem que processos contra o mesmo motorista correm em outro município.
As autoridades devem cassar nos próximos dias a carteira do infrator detido nove vezes. Ele, porém, é um dentro de universo de mais de 18 mil motoristas detidos por embriaguez no Rio Grande do Sul nos últimos dois anos. Nesta reportagem, Zero Hora mostra brechas e recursos que facilitam a vida dos imprudentes.
Fonte: Zero Hora