Walter Pena, ex-diretor-geral do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), antes de ser defenestrado do cargo pelo governador Simão Jatene no último dia 11, sob uma saraivada de denúncias de corrupção no órgão, promoveu mais uma irregularidade que se soma às várias denunciadas pelo DIÁRIO nos últimos meses. Como derradeiro ato de sua questionada gestão, Pena autorizou, com dispensa de licitação, a prorrogação do contrato da SCE Médicos Ltda, nome de fantasia Climept, com o órgão pagando R$ 19.640.071.50. A publicação da dispensa ocorreu na edição do Diário Oficial do Estado do último dia 11, um dia antes de o ex-diretor ser exonerado pelo governador, com data retroativa a 1º de julho. Detalhe: a publicação não divulga até que mês e ano vai a prorrogação.
A Lei n° 8.666/93, que rege as licitações, diz que nenhum contrato continuado com o poder público pode ultrapassar o prazo de 60 meses e o que foi assinado pelo Departamento de Trânsito do Estado (Detran) com a empresa SCE Médicos Ltda. (Climept) para a realização de exames médicos e psicotécnicos em condutores já está 12 meses além desse prazo. O contrato foi fechado em 2006 no último ano do primeiro governo Simão Jatene e assinado em 2 de julho de 2007, no primeiro ano do governo Ana Júlia (PT), quando começou a ter validade.
Esse contrato deveria ter sido encerrado em julho do ano passado, quando completou os 60 meses, prazo máximo previsto na Lei das Licitações. Mesmo após transcorrido e ultrapassado um ano além desse prazo, tudo permanece na mesma: a empresa médica, sozinha, fatura milhões à custa do sofrimento e estresse de milhares de condutores que sofrem enfrentando filas para tirar a primeira habilitação ou renová-la. É mais um fato grave que merece investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura a corrupção no Detran comandado pelo senador Mário Couto, o “Mister M” de Cuiarana.
O Artigo 57 da Lei 8.666 é bem claro e diz que os contratos poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos limitada a sessenta meses. Isso mostra que, pela lei, o contrato da Climept com o Detran caducou e é nulo. O parágrafo terceiro do mesmo artigo é bem claro: “É vedado o contrato com prazo de vigência indeterminado”. O artigo 82 da Lei diz que os agentes administrativos que praticarem atos em desacordo com a lei responderão civil e criminalmente por seus atos; e o artigo 92 ressalta que quem fizer a prorrogação contratual sem autorização através de instrumentos contratuais pode pegar de dois a quatro anos de cadeia, além de pagar multa.
O fundamento legal para a dispensa de licitação feita por Walter Pena antes de deixar o cargo no início deste mês foi o artigo 24, inciso IV da Lei 8.666/93, que prevê que a licitação pode ser dispensada “nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa (...)”.
A pergunta é: a “prestação de serviços médicos e avaliações psicológicas especializadas, relacionados a exames de aptidão física e mental e exames de avaliação psicológicas a serem aplicados aos candidatos à habilitação para conduzir veículos automotores, renovação e mudança de categoria”, que é o objeto da dispensa de licitação, configuram casos de emergência ou calamidade pública, podem ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança das pessoas?
Exclusividade ilegal prejudica atendimentos
A resolução 267 de 15/02/2008 do Conselho Nacional de Trânsito determina que o serviço oferecido pela Climept deverá ser prestado por entidades públicas e privadas que, se interessadas e preenchidas as condições da resolução, “serão credenciadas pelos órgãos ou entidades executivas de trânsito dos estados e do Distrito Federal”. Ou seja, não há e nunca houve necessidade de licitação e ela só ocorre misteriosamente no Detran do Pará. O credenciamento possibilita que várias empresas prestem esse serviço, facilitando a vida da população. Mas, ainda que a licitação fosse legal, o contrato atual já está totalmente irregular por ter extrapolado em muito a renovação permitida pela Lei de Licitações.
O processo para a retirada da primeira habilitação segue dois caminhos: o primeiro é o exame médico-psicotécnico e o exame prático feitos nas dependências do Detran. Nesse último caso, como manda a Lei, o departamento credenciou várias auto-escolas para prepararem os alunos para obterem sua primeira Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Para o exame físico e de sanidade mental o princípio terá que ser o mesmo: o credenciamento de várias clínicas para permitir a livre escolha de atendimento como ocorre em todos os demais Detrans da federação. Só que, percebendo o rico filão, as últimas administrações no departamento mantiveram a reserva de mercado da Climept, que já dura sete anos.
O DIÁRIO teve acesso a uma cópia do contrato. Quando foi assinado era estimado em R$ 14,5 milhões por ano sendo pouco mais de R$ 1,2 milhão para a realização de 12 mil exames de sanidade física e mental por mês. Desse total, 88,5% ficam para Climept e apenas 11,5% para o Detran. Ressalte-se que a quantidade de consultas é estimada porque depende da quantidade de pessoas que realiza os exames mensalmente. Os exames médico e psicotécnico começaram com o valor de R$ 51,30 - hoje reajustado para R$ 170 (primeira habilitação) e R$ 135 (renovação). Numa estimativa rasteira, o número de atendimentos hoje, sete anos depois, deve tranquilamente ultrapassar os 15 mil ao mês, com o faturamento da empresa beirando os R$ 20 milhões.
Se considerarmos 20 dias úteis por mês e os 15 mil atendimentos mensais, a média de consultas chega a 750 por dia. Todas concentradas em apenas uma clínica. E não estão nessa conta os exames itinerantes realizados nas 12 unidades regionalizadas onde tudo é bancado pelo Detran, incluindo o aluguel do prédio, água, energia e até o telefone. Só em Belém são três os locais onde a clínica atua. E o mais absurdo: tudo está previsto no contrato, contrariando a Resolução do Conselho Federal de Psicologia.
Levantamento feito pelo DIÁRIO mostra que a Climept utiliza nove das 12 gerências regionais do Detran espalhadas pelo Estado para as consultas, sem pagar nenhum centavo ao órgão, além dos 11,5% repassados por contrato. Tendo em vista os altos custos que têm ao bancar as despesas da Climept sem qualquer retorno, o lucro com o contrato com a clínica deve ser quase zero.
Um Detran à sombra de Mário Couto
O contrato nulo da clínica responsável pelos exames médicos e psicotécnicos do Detran no Pará se soma às várias outras irregularidades e fraudes denunciadas pelo DIÁRIO desde abril passado, entre elas o esquema de desvio de recursos do órgão para custear o time de futebol Santa Cruz da Vila de Cuiarana, de Salinópolis, presidido pelo senador Mário Couto; passando por fraudes na emissão de Carteira Nacional de Habilitação (CNH), situações claras de nepotismo envolvendo parentes do senador e envolvendo contratos e convênios milionários feitos de forma irregular e que envolvem o alto escalão do Detran, ocupados por pessoas de confiança do “Mister M” de Cuiarana.
O tucano está com as contas bloqueadas pela Justiça por causa do esquema de desvio de recursos públicos de sua gestão na presidência da Assembleia Legislativa do Estado (entre 2004 e 2007). Além de ter conseguido o bloqueio dos bens do senador, da sua filha, a deputada Cilene Couto, e de mais 38 pessoas, o MP vai pedir a Justiça a devolução dos mais de R$ 13 milhões que foram desviados dos cofres da casa durante os quatro anos.
(Diário do Pará)